Retratos de Rua

Posted by Ricardo Cazarino | Posted on quinta-feira, novembro 29, 2007

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"O morador de rua que havia sido queimado na madrugada de ontem na região central de São Paulo não resistiu aos ferimentos e morreu por volta das 2h40 desta quarta-feira no Hospital das Clínicas. Segundo a assessoria do hospital, ele tinha queimaduras em 85% do corpo." ( Folha on line 28/11/07)

A questão dos moradores em situação de rua na cidade de São Paulo é um antigo assunto social debatido pelas autoridades e pelos grupos de assistências sociais. O antigo centro da capital, deteriorado ao longo dos anos, é uma área onde esses moradores já fazem parte da paisagem. Abaixo segue um matéria realizada em julho de 2006 sobre a situação dos moradores de rua do centro velho, que concorreu ao prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos - "novos talentos"

Moradores abandonados pela sociedade e autoridades lutam pelo direito à vida

Por Ricardo Cazarino


As seleções de Portugal e Alemanha entravam em campo na Copa mais disputada dos últimos anos, enquanto, o sino da Sé badalava quatro vezes. Na Alemanha, o hino nacional levava os torcedores ao delírio e orgulho pelo país. No centro da velha São Paulo, pessoas reservaram o sábado à tarde para passear, rezar e visitar as belezas da catedral.


Ao redor do Marco Zero, pequeno monumento construído em 1934 com ângulos que simbolizam pontos do país, artistas de rua com a viola na mão espalham ao som de uma musica sertaneja a espera de ganhar alguns trocados. Ao lado, uma roda se formava para ouvir um pregador anônimo de Deus. A bíblia em punhos e os gritos eram suas armas perante a palavra divina. Os ambulantes, característica presente da metrópole, estavam com suas bancas em diversos pontos da praça. Gente de todas as cores, raças e lugares se esbarram nesse grande formigueiro.

Pela lateral das paredes ásperas da catedral, dois homens de rua jogam conversa fora sentados na calçada. A carroça presa ao poste com papelão denunciava o fim de mais um dia de trabalho. Bico. Uma fala espontânea acaba com o anonimato: “Olá, pode chegar sim. Não to fazendo nada mesmo. Anota ai, meu nome é Waldemir, com “W”, Gonçalves Sampaio, nasci em Manaus, vim pra cá com minha família. Sou pai de três filhos casados, e graças a Deus bem casados”. Ao lado, uma garrafa do mais “puro mel”, como dizia Waldemir. A camisa branca velha e suja acompanhava o sapato preto e a calça azul marinho desbotada.

Mais recatado e com semblante sério e desconfiado Manuel Ferreira de Souza entra na conversa. Boné azul enterrado na cabeça, camisa verde amassada por baixo de uma jaqueta de cores bagunçadas, a calça cinza pelas canelas deixava a mostra as meias brancas de algodão dentro um sapato social preto. Desbotado. O corpo franzino e encolhido querendo se esconder mostrava a pele morena rústica. A barba por fazer e as unhas sujas mal tratadas acusava a falta de banho. “Sou do Piauí, tenho 54 anos. Lá na minha cidade eu era comerciante. Vendia tudo que você pode imaginar, até minha mãe” deixa o sorriso escapar pela primeira vez. “Em casa era eu, minha mãe e mais dois irmãos. Graças a Deus consegui estudar até o terceiro colegial. Vim pra São Paulo com emprego garantido em Mogi das Cruzes em 1976. A empresa era de transmissão de energia elétrica e eu era ajudante de montagem. Mas fiquei sem emprego, sem condições e vim parar nas ruas.”

Waldemir não se intimida e continua: “Fui casado durante 25 anos, sou técnico em edificações pelo Senai. Trabalhei como encarregado de obra e fui mestre de obra. Cheguei a ganhar R$ 1.100 por mês. O desemprego em 90 com aquele filho da puta do Collor me matou. Fiquei sem saber o que fazer. Essa foi a razão da minha separação. Hoje a minha família está bem, mas tenho vergonha na cara e não procuro ninguém. Onde já se viu um senhor de 55 anos viver debaixo da saia da mãe com 77 anos?! Não volto pra casa nessas condições. Estou há doze anos aqui no centro”.

A conversa finalmente parecia entrar em seu ritmo. O tom das palavras, antes desconfiadas, transformava-se pouco a pouco. A confiança e o sentimento de cordialidade deixavam o papo mais natural. A tarde já começa a se despedir. A garrafa, agora estava mais vazia. Após um curto gole, Waldemir abre sua vida. Carência. “Hoje estamos juntos vendendo latinha e papelão. Isso dá uns R$ 2 ou R$ 3 por dia. Sinto desprezado e tenho alguns momentos de solidão. Outros, fico rebelde inclusive com a minha religião. Mas depois caio na real e vejo que a igreja não tem culpa. Tenho medo do castigo de Deus e de ficar doente, na cadeira de rodas, dependendo dos outros.”

Segundo pesquisa realizada em 2003 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), há na cidade de São Paulo 10.394 pessoas em situação de rua. Para a socióloga Marisa Espírito Santo Borin, que participou do censo, a população de rua é heterogenia. “Há diferenças do tempo que estão na rua, da cultura anterior, da trajetória de vida, as redes de relacionamento, da idade, de sexo e escolaridade. A sociedade não tem uma posição muito clara, hora ela tem um ar de piedade, hora de medo, de preconceito. Falta uma política pública no sentido de apresentar uma oportunidade. Temos que investir em uma direção mais adequada para essa população, de criar locais específicos, oferecer cursos, criar espaços para eles mostrarem seus trabalhos.”

Sem perspectiva de vida,Waldemir Gonçalves e Manuel Ferreira de Souza, retomam a sua rotina. Com a alça da carroça pela cintura, as rodas giram lentamente para o meio da noite. As luzes amareladas deixam as sombras guiarem os pensamentos. Sem destino, o caminho parece não ter parada certa. Sem direito, a vida parece não ter sentido. “Tenho vergonha de ser brasileiro”, resume Manuel.